11/11/2006

Hipólita (9)

Hipólita desde criança que é uma solitária por opção. Nunca jogou berlinde, nunca lançou o peão. Não achava graça a nenucos, nem a barbies, a ideia de brincar aos papás e ás mamãs incomodava-a solenemente. Antes sozinha do que participar em brincadeiras de grupo. Cresceu, nada mudou muito, o anti-social era dado adquirido na sua vida.


- “Ninguém me compreende e ainda bem.”
A vida preenchida fazia-lhe nervos. Mais nervos que a sua própria vida causava, só sua mãe. Esta era um ser social, um estafermo com uma matraca gigante, tinha conversa para muito mais que meio mundo. E pior, nunca aceitou o facto da filha ser o bicho de toca da terra. Porque é que Hipólita não podia ser como os outros, não compreendia essa coisa de ser uma pessoa diferente. Diferente? Isso era para génios, maluquinhos, artistas...


Assim, quando Hipólita partiu para a cidade, a mãe passou a falar com ela, apenas uma vez por semana. Quando falava com a filha ficava sempre irritada, sentia que tinha falhado como mãe. Ela não criou uma filha, criou um BICHO PARASITA.


Assim, há coisas na vida com as quais Hipólita lidava muito bem, uma delas era o facto de nunca ter constituido família. Para quê ... mudar fraldas, dar de comer a um tipo qualquer que tinha conhecido provalvelmente aos vinte anos, e aturar almoços de família de Domingo onde todos competem pelo prémio família perfeita?


A paciência tem limites, e a de Hipólita (muito frágil) não era excepção. Certo dia liga-lhe Dona Emilia sua mãe.
-“Minha filha, então já arranjaste um maridinho? Já és normalzinha?”

-“Oh mãe, não. Já lhe disse que homens no máximo o electricista, o lixeiro, e o homem do gás. Um desses.”

-“Pois eu percebo, os tempos modernos, tens um espírto empreendedor. Queres viajar não é. Pois, isso agora anda na moda. Eu percebo.” – e nisto, começa a soluçar e chorar como se não houvesse amanhã, um verdadeiro pranto.
Hipólita não percebia esta treta da família, filhos, maridos, sogras e merdas. Mas pronto, a emoção ligeira deu-lhe forte. E estava decidida na próxima terça já tinha família para a mãe, se calhar até podia ser divertido. Estava decidido.

- “Adeus mãe do meu coração.”
Meia garrafa de whisky e estava feito o plano, tinha que observar famílias em suas própria casas, apropiar-se de suas vidas, transformá-las à sua imagem e estava feito, fácil como tudo.

E então como seria possível a cena do voyeur... fácil também... ANDAIMES. Subia aos andaimes, sentava-se, tirava notas essenciais e relatava-as à sua mãe. Até devia ser divertido. Tantos anos para ter um plano tão sedutor.

Então no dia seguinte começa o voyeurismo. Sai de casa, com as neuroses habituais das chaves, e foi á procura tanto do andaime como da família perfeita.

E lá estava, foi bem fácil, porque na cidade havia agora o plano de recuperação de fachadas do centro histórico. E lá fez o pim-pam-pum e toca a subir, escalada não era a sua especialidade, mas lá se safou. SAFOU-SE IGUAL A : 30 minutos de mentalização, 25 escorregadelas, 1 litro de água, suores, e trapalhiçe constante na escalada.

No primeiro andar encontrou um solteirão, comendo tremoços, em casa porca,vendo filmes porno e masturbando-se. Se por um lado o fulano era nojento, por outro aquela visão agradava-lhe, o tipo estava tão contente...

Segundo andar encontra viúva, com muitos gatos, fazendo tricot, vendo telenovelas mexicanas (bem dramáticas). Se por um lado aquela imagem era infeliz, as fotografias das viagens da senhora pelo mundo causavam-lhe grande inveja.

Terceiro andar estavam estudantes, consumindo alcoól, filmes, lasanhas do Lidl, e música bem alto, descrever o resto era muito indecente), Hipólita odiou ver tanta gente junta, nada de bom tinha aquele andar, que nojo aquilo lhe causou.

Quarto andar estava um homem a ver televisão, uma mulher na cozinha, e duas crianças aos berros e à estalada. A familia de Domingo. Perfeito, mais credivel era impossivel.


Então foi muito fácil a descrição para sua mãe.
-“Olá mãe! Sabe, aluguei uma família, vinha tudo incluído, marido, filhos e afins. A merda de sempre. O meu marido não faz nada, só come, bebe, dorme e manda-me calar para ver a bola. À noite quero-me deitar, e ele faz-me festinhas nos pés e nas costas, depois mete-me a mão na anca e agarra-me com força, entetanto queixa-se que as minhas mãos cheiram a alhos, e que eu não me arranjo para ele. E eu digo-lhe sempre que não, que não me toque, porque me dói a cabeça e ele tem as mãos asperas. E ele insiste, chama-me chata e alega... - “nem sei como é que ainda estou casado contigo”. No meio disto tenho que cozinhar para quatro pessoas, que não gostam de nada, as crianças não gostam de legumes, só gostam de mostarda e ovos kinder e o marido não gosta de frango grelhado, só estufado ou melhor no churrasco. As crianças nunca querem ir dormir porque tem uma consola e passam a vida na internet a ver gajas nuas.. Eu tenho uma vida normal, faço as camas, faço o almoço e o jantar, limpo a casa e aturo-os, e ADORO. Como é bom servir os outros mãezinha, a vida de sonho.”

- “Estou tão orgulhosa minha filha, já és uma mulherzinha, melhor uma pessoa normal. Tudo o que sempre desejei para ti.”

E pronto, basicamente, esta é a vida que a mãe de Hipólita queria para sua filha. Dona de casa, responsavel, organizada e controladora, uma filha á sua imagem. Hipólita não aguentou a mentira muito tempo. Vomitava nos andaimes cada vez que subia aquele prédio.

1 Comments:

Blogger linfoma_a-escrota said...

MENINO DO BALOIÇO ESTÁTICO
Esteve sentadinho na mesa de brincar dos pais
durantos tantos anos sozinho
que nunca teve a noção do desejo.
Era pequenino, os outros metiam-lhe medo e
estaria sempre
bem protegido no canto mais escuro de si mesmo,
sem sequer disso se aperceber.
Imaginava com os dedos sujos das crianças
inseguras,
sonhos a pastel sem coragem para levantar vôo.
Fez causas e efeitos devastadores
com seu riso estridente e libertador,
era angústia escondida num corpo mirrado
a falar mais alto e a mentir a toda a gente.
Começou a pintar o corpo e as paredes
para se exprimir,
fotografava-se para ficar bonito e escondia-o do mundo
porque Almeida Garrett disse que a modéstia era a melhor virtude
e ele cumpriu.

Mais velho
nunca chegou a arrancar sinceridades,
nem o mais breve olhar de curiosidade pelo seu mundo.
Devia ter ficado sem se expôr
na mesa rasteirinha da sala de estar
onde pertencia e
onde seus sonhos foram deuses altruístas.
Não havia lixo no chão,
estava tudo no seu sítio certo e
se chorasse
não teria mentiras para o consolar,
mas sim amigos imaginados
a galar qualidades refundidas nas
pétalas mais doces e avermelhadas
das rosas mais belas e extraviadas
no jardim mais longínquo e surreal da existência.

Era a gota virtuosa que escorrega
nos resquícios dum orgulho masoquista,
suavemente mal tratada
espelhando-se
nesta infância presente.

joão meirinhos 2003
in fotosíntese.

7:28 da manhã  

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